A última tentativa - conto - Diane de Camillis
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A última tentativa – conto

A última tentativa – conto

Nem sempre a outra chance para o amor está em suas mãos.

O julgamento se aproximava. Ainda não tinha sido revelado o verdadeiro culpado por aquele crime tão horrendo.

Yuri tinha ainda algumas horas para concluir sua investigação e resolveu andar um pouco para pensar. Andou por horas, sem conseguir organizar os pensamentos, até que em determinado momento olhou para baixo e viu seus pés descalços, enlameados e machucados de tanto andar. De repente se deu conta da atmosfera ao seu redor e olhou atônito, as cenas que estava vendo. Uma atmosfera sombria, pessoas definhando, com expressões maléficas ou vazias. Ele conseguia ver os corações das pessoas. E o que via eram corações vazios, escuros, de pedra, maldosos, corações de gelo.

Exausto, sentou-se à beira de um riacho sujo, cercado de árvores secas, pássaros mortos pelo chão, peixes boiando. Passara muitos anos percorrendo o céu e a terra, tentando negociar com os deuses mais um tempo para conseguir mudar o mundo. E agora sua missão tinha mudado, tinha que descobrir o culpado de um crime.

Ele tinha pouco tempo para descobrir o assassino. Deveria levar sua conclusão ao júri. Investigara, mas não tinha chegado a uma definitiva, já que eram tantos suspeitos.

Será que a culpada tinha sido a dona da padaria que espancara seu cachorro até a morte porque ele fez xixi em sua bolsa nova? Ou o homem que colocou seu sócio na cadeia para ficar com os negócios de ambos? Teria sido o rapaz que matou a mãe por conta de uma herança? Ou aquele pai que violentara a filha desde que ela tinha nove meses? Ele pensava nos casos mais recentes, talvez não tão bárbaros quantos outros que vira pelo mundo, mas que pudesse ter sido a gota d´água.

Tinha que fazer uma análise rápida, precisa e final para revelar o culpado antes que fosse tarde demais. Será que já não era? Será que teria como reverter aquela triste situação? Será que o júri teria como punir os culpados pelo crime e salvar aqueles que Yuri vinha tentando salvar há tempos? Era tanto tempo que ele nem se lembrava mais.

Havia conhecido muitas pessoas boas e caridosas em sua jornada, mas aos poucos as viu morrer sem que outras como elas surgissem em seu caminho. A maioria dos seus encontros nos últimos anos tinha sido com trágicas histórias. Histórias envolvendo crimes, traições de companheiros, de amigos, de familiares, de colegas de trabalho. Governantes, políticos, policiais e médicos se corrompendo cada vez mais. Até líderes religiosos já tinham entrado na lista. Lista, aliás, que não parava de crescer. Todos eles eram culpados de uma certa forma, o que dificultava ainda mais a investigação.

Ele se perguntava como poderia informar o júri e dizer que este crime tinha sido cometido por várias pessoas ao redor do mundo? Uma única vítima, porém assassinada por tantos ao mesmo tempo? Seria mesmo possível?

Seriam todos culpados por um dos maiores crimes que já existira na humanidade? Quem sabe o assassinato mais brutal que a terra já tivesse visto? E enquanto ainda pensava, chegou a hora do julgamento e foi recolhido para o tribunal celestial:

― Yuri, descobriu o culpado?

― Sim, Meritíssimo. É com grande tristeza que digo que fomos derrotados: ele foi assassinado e o mal venceu. Os seres humanos não cooperaram e deixaram o amor morrer.

― Como foi que isso aconteceu?

― O mal começou a se espalhar devagarzinho. Todas as pessoas que acreditavam no amor e faziam o bem foram se contaminando; foram se decepcionando com seus parentes, vizinhos, filhos, com o ser humano em geral e ele foi se perpetuando. Foi dominando e vencendo.

― E quanto às pessoas boas? Não conseguiram espalhar sua bondade?

― Cada indivíduo, a cada nova decepção em sua vida, foi se tornando mais duro e egoísta. As pessoas foram ficando individualistas e se afastando dos amigos. Já não procuravam mais parceiros para constituírem famílias; as pessoas não se casavam mais e nem tinham mais filhos. O mundo parou de gerar a vida, parou de se perpetuar. O amor pouco a pouco foi indo embora, abandonando cada coração. Os corações já não amavam mais; não amavam mais as pessoas, os animais, a natureza. Só amavam o dinheiro, a fama, o sucesso. Alimentavam o ódio, a inveja, a indiferença, a cobiça, o desprezo. O mal foi tomando conta de todos os seres que habitavam a terra.

― Você está dizendo que toda a humanidade é culpada pela morte do amor?

― Sim, Excelência. Hoje podemos decretar o fim do amor. Ele morreu. Não existe mais. Não há mais amor na terra. Sem ele, a legião de sentimentos bons também não conseguiu sobreviver. Não há mais caridade, compaixão, paz, felicidade. O amor se foi para sempre.

Via-se claramente a tristeza e a dor no rosto de cada membro do júri. Assim como no do próprio juiz, nas testemunhas e em todos os presentes naquele tribunal.

Um assessor abriu uma grande tela atrás do juiz e todos puderam comprovar o que Yuri dizia: cenas de intrigas, inveja, traições, assaltos, guerras, violência. Eram tantos sentimentos ruins que ninguém tinha mais nada a acrescentar ao caso.

Batendo o martelo o juiz disse:

― É o fim da humanidade. Vamos enterrar o amor e deixar o mundo sucumbir ao que os próprios homens criaram. Vamos deixar que eles acabem de destruir tudo de maravilhoso que lhes foi dado de presente. Não há mais o que ser feito. E prosseguiu:

― Yuri, você fez o que pôde, mas não há como mudar ninguém que não queira ser mudado. Você fez de tudo para mostrar à humanidade que eles precisavam valorizar o amor mais do que tudo na vida e lhe deram as costas. Vamos enterrar o amor para sempre.

E assim foi.

A humanidade assassinou o Amor.

Texto de Diane De Camillis

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